A principal crise hídrica do país em mais de 90 anos desperta um antigo fantasma na mente dos brasileiros: o racionamento de energia do início dos anos 2000.
Para dar ares mais fortes à lembrança, o governo de Jair Bolsonaro, inclusive, edita uma Medida Provisória que cria diretrizes de intervenção para que seja possível operacionalizar um plano de cortes de energia para economizar os recursos. O texto ainda não saiu do Ministério de Minas e Energia e o órgão informou ao G1 que não trabalha com planos de racionamento.
A MP, diz o governo, visa a “fortalecer a governança do processo decisório, possibilitando maior agilidade, segurança jurídica e total respeito às competências de todas as instâncias”.
Há pouco mais de 20 anos, em maio de 2001, o país iniciava um programa de metas de redução de consumo de energia. A gravidade da seca nos reservatórios e a falta de investimento em geração e transmissão de energia causaram, juntas, uma severa crise de oferta de eletricidade.
À época, documentos mostraram que o governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) sabia que havia risco de falta de energia, mas a equipe diz ter sido surpreendida pelo estágio avançado da situação. Sem capacidade de manejo, foi necessário reduzir compulsoriamente o consumo.
Em suma, o brasileiro foi obrigado a reduzir seu uso de eletricidade em 20%, sob risco de sanção na conta de luz e cortes de energia. Quem economizasse além da meta tinha descontos.
À época do racionamento, o Brasil acabava de sair da crise cambial de 1999. Foi o momento em que o país abandonou a regulação do câmbio e deixou o real flutuar livremente em relação ao dólar.
O controle de câmbio havia sido introduzido como parte do Plano Real para resolver a hiperinflação do início dos anos 1990. No fim da década, o câmbio fixo havia dado lugar às “bandas cambiais”, em que a rédea era mais solta, mas ainda mantinha a interferência na valorização do real em intervalos de cotação.
A ação no câmbio perdurou por anos e havia deixado um desequilíbrio grande na balança comercial e necessidade de juros mais altos, o que passou a prejudicar o crescimento e a formação de empregos.
Em 1999, após a reeleição de FHC, as reservas internacionais estavam esvaziadas e a dívida pública aumentava pela necessidade de aportes para manejar a cotação do real. O governo foi obrigado a mudar o regime para o câmbio flutuante.
Depois da liberação, os juros caíram e a balança comercial se beneficiou, mas houve impacto forte na inflação e no endividamento de empresas que contrataram empréstimos em dólar. Ainda assim, a retomada da economia acontecia por meio de empresas exportadoras, que se beneficiaram de um dólar mais alto, e do aquecimento da indústria.
Mas a retomada se perdeu justamente quando o racionamento entrou em questão. Sempre que há falta de oferta de energia, a indústria é obrigada a paralisar a produção e, eventualmente, os empresários precisam também repassar o custo extra ao restante da cadeia. Como efeitos secundários, os setores de comércio e serviços aumentam os preços ou diminuem as margens de lucro e investimentos.
A ondulação dos resultados foi evidente. Afetado pela crise cambial, o PIB do Brasil teve alta de 0,5% em 1999. No ano seguinte, subiu 4,4%. Em 2001, ano do racionamento, o aumento foi de apenas 1,4%, marcado por três trimestres de queda.
Em cenário muito mais delicado, o Brasil se esforça agora para deixar para trás a crise causada pela pandemia do coronavírus. O G1 procurou economistas, consultores do setor elétrico e ex-membros do governo FHC para comparar o entrave enfrentado em 2001 com o momento atual.
O ex-ministro da Fazenda Pedro Malan e o ex-ministro da Casa Civil Pedro Parente negaram pedidos de entrevista.
A justificativa dos governistas, contudo, foi amplamente documentada à época. Parente, que foi o coordenador do gabinete de crise elétrica, classificou a falha como um problema de comunicação entre governo e áreas técnicas do setor. De certa forma, foi subestimada a dependência do país em sua matriz hidrelétrica e passou despercebida a falta de estrutura de transmissão de energia entre uma região e outra.
O cenário em 2021 é muito diferente. Segundo levantamento da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), as hidrelétricas passaram de 83% para 62% da capacidade instalada de geração de energia entre 2001 e 2021.
O índice ainda é bastante alto, mas a diversificação – usinas eólicas que nem eram consideradas representam hoje 10% da produção – veio junto com um aumento da capacidade instalada de geração de energia, que passou de 74,9 GW para 174,7 GW em 20 anos. As linhas de transmissão também mais que dobraram, de 70 mil km para 145,6 mil km de extensão.
Para Walter de Vitto, economista e analista setorial da Tendências Consultoria, a diferença entre aumento de consumo e o de capacidade instalada afasta, por ora, um risco de apagão. Na visão do especialista, a retomada econômica de 2000 tinha um vigor maior que a atual, o que demandava mais do setor energético.
O consumo de energia naquele ano havia subido 5,3%, segundo a EPE. Em comparação, a demanda em 2020 veio de período de oscilação e foi equivalente a 2018.
Para ele, o aumento previsto de consumo de energia em 2021 deve seguir as projeções do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) e será da ordem de 4,5%. Assim, diz ele, mesmo em caso de racionamento, seria muito mais leve do que foi visto em 2001.
O pesquisador João Teles, da FGV Energia, concorda. Em sua análise, a crise hídrica causa desconforto por conta da obrigação de elevar a bandeira tarifária para preservar os reservatórios até o fim do ano.
Ele afirma que o mês de novembro é sempre um marco de virada do setor elétrico. É o retorno das chuvas, mas também do aumento do consumo de energia em todo o país.
Como a situação dos reservatórios do Centro-Oeste e Sudeste está dramática, o governo precisou antecipar o cuidado com os reservatórios para não ficar “desarmado” no período mais decisivo. “As térmicas foram ligadas no ano passado. As medidas preventivas, dessa vez, foram tomadas bem antecipadamente”, diz.
O economista Fernando Camargo, sócio da LCA Consultores e especialista em infraestrutura, não é tão otimista.
Para ele, o ONS trabalha com uma projeção de crescimento da demanda “defasada” e abaixo do ritmo de crescimento observado entre janeiro e maio de 2021. Enquanto o órgão fala em 4,5% de crescimento de consumo, Camargo estima ser mais realista uma quantia de 6% a 6,5%.
O economista entende que, nesse cenário, devem persistir os preços altos de energia e entram no radar os riscos de apagão de duração e profundidade “difíceis de estimar”.