Centenas de milhares de pessoas presas perto de combates violentos no extremo oeste de Mianmar, no Sudeste Asiático, podem não saber nada sobre a Covid-19 graças a uma interrupção da internet que já dura um ano. A denúncia foi passada por grupos de direitos humanos.
Em junho do ano passado, o governo de Mianmar, liderado pela conselheira de Estado Aung San Suu Kyi, cortou o acesso à internet para nove municípios no oeste do país por causa de preocupações com o uso da internet para inflamar confrontos entre militares e insurgentes do país.
Um município restaurou seu serviço em maio, mas outros oito, com uma população total de cerca de 800 mil pessoas, permanecem sob um blecaute de informações.
A Human Rights Watch e a Anistia Internacional dizem que o corte prolongado do serviço coloca vidas em risco – não apenas porque está impedindo as pessoas de denunciar possíveis violações dos direitos humanos, mas também porque impediu a transmissão de campanhas de saúde pública sobre a pandemia do novo coronavírus.
“Com o conflito armado entre as forças armadas de Mianmar e o Exército Arakan, no estado de Rakhine, em meio a uma pandemia, é fundamental que os civis obtenham as informações necessárias para se manterem seguros”, afirmou Linda Lakhdhir, consultora jurídica da Human Rights Watch na Ásia em um comunicado.
Na segunda-feira (22), o país havia registrado seis mortes e 292 casos positivos em mais de 64.532 testes, segundo o Ministério da Saúde de Mianmar.
Alguns casos foram encontrados nos municípios de Maungdaw e Buthidaung, no norte de Rakhine, onde mais de 100 mil muçulmanos da etnia rohingya vivem em campos lotados. Muitos fugiram das “operações de liberação”, lançadas pelos militares contra os povos rohingya [imigrantes muçulmanos] em 2018.
A ONU pediu que as forças armadas de Mianmar enfrentassem um tribunal internacional, sob acusação de genocídio, por atrocidades praticadas contra os muçulmanos rohingya. Os budistas de Rakhine que ficaram desabrigados por lutas mais recentes também estão vivendo em acampamentos na área.
À medida que a pandemia do novo coronavírus se espalhou pelo mundo, no início deste ano, o governo de Suu Kyi lançou uma campanha de informação chamada “Nenhuma pessoa deixada para trás” sobre prevenção de doenças, incluindo requisitos de distanciamento social.
No entanto, a deputada Htoot May, que representa a Liga Nacional de Democracia Arakan no Parlamento da União da Câmara de Mianmar, disse no domingo (21) que muitas pessoas que vivem no norte de Rakhine e no estado vizinho de Chin não estão recebendo os avisos de saúde pública que circulam no Facebook, em aplicativos de mensagens ou sites do governo.
“Quando pergunto às pessoas do meu círculo social se elas estão cientes do coronavírus, tenho que explicar para elas o que é a pandemia global desde o básico”, disse Htoot May. “Preciso contar o que é o distanciamento social e como praticar a higiene das mãos”.
“Não posso viajar muito por causa da Covid-19, obviamente, então há apenas algumas pessoas que posso avisar”, continuou a parlamentar.
“Eles não têm medo da Covid-19 porque não sabem disso, neste momento estão muito mais preocupados com a luta”.
A CNN entrou em contato com o porta-voz do Gabinete do Conselheiro de Estado de Mianmar, Zaw Htay, para comentar o assunto.
Confrontos em andamento
Os combates eclodiram no final de 2018 entre os militares de Mianmar, conhecidos como Tatmadaw, e o bem equipado Exército Arakan, que deseja maior autonomia para os Budistas de Rakhine, a maioria da população naquele estado.
De acordo com um carta aberta publicado por uma coalizão de grupos políticos e comunitários de Rakhine no domingo (21), à medida que a guerra avança, o desligamento da internet gera mais mortes, pois nega informações em tempo real às pessoas.
Os confrontos aumentaram independentemente do blecaute na internet, com 151 civis mortos e 344 feridos no fogo cruzado entre janeiro e maio, segundo a carta.
“Este não é um conflito que pode ser vencido pelos dois lados no campo de batalha”, disse Richard Horsey, analista independente sobre o país, ao The International Crisis Group [em tradução livre, Grupo de Crises Internacionais, organização não governamental]. “É essencialmente um problema político, onde a população de Rakhine quer mais autonomia e mais voz sobre seu futuro. Mianmar precisa desenvolver uma resposta política e isso está faltando”.
Para Horsey, a alternativa tem sido a guerra em curso, e tanto o Exército de Arakan quanto os militares de Mianmar foram acusados de atrocidades. Khine Kyaw Moe, um deputado que representa o Partido Nacional Rakhine, diz que, sem acesso à internet, essas atrocidades não são relatadas nem documentadas.
“Ambos os exércitos podem estar cometendo violações aos direitos humanos e, sem a rede, as pessoas são separadas dos jornalistas e das ONGs locais e internacionais às quais podem denunciar essas coisas”, reportou.
A carta aberta de domingo, endereçada a Suu Kyi e assinada pelos 79 grupos de partes interessadas de Rakhine, diz que está procurando por uma solução política, que começaria com o governo reconectando a internet.
“A liberdade de expressão e o acesso à informação são a base da democracia. Nesta era, o acesso à internet é o padrão democrático. A igualdade exige informações disponíveis sobre economia, educação, saúde e sociedade”, diz a carta.
Ano eleitoral
Como muitas outras nações, Mianmar introduziu toque de recolher, proibição de grandes reuniões e um período de quarentena para chegadas ao exterior na tentativa de controlar a propagação do novo coronavírus.
O governo também introduziu sanções penais para as pessoas que não cumpriram as regras, incluindo sentenças de prisão para quem violar ordens de quarentena. Pelo menos 500 pessoas, incluindo crianças, foram condenadas a penas de prisão que chegam a até um ano.
A resposta do país parece ter provocado a propagação do vírus, mas não ficou isenta de críticas.
“Jogar centenas de pessoas atrás das grades em prisões lotadas e sem higiene derrota o propósito de conter a propagação da Covid-19”, disse Phil Robertson, da Human Rights Watch [organização internacional de direitos humanos], em maio.
A abordagem de Suu Kyi à pandemia pode funcionar contra ela, já que o país se prepara para votar em uma eleição no final deste ano.
A parlamentar Htoot May disse que os combates em Rakhine e o subsequente desligamento das comunicações também podem corroer o apoio dos eleitores a Suu Kyi e seu partido, a Liga Nacional pela Democracia.
“Em 2015, acreditei em Suu Kyi e fiquei feliz em trabalhar com ela”, disse a deputada Htoot May. “Achei que Aung San Suu Kyi iria ajudar pessoas em áreas remotas a obter acesso à internet, e não tirar delas. Aung San Suu Kyi não pode falar de direitos humanos. Ela precisa praticar.”
Por outro lado, a resposta de Suu Kyi (vencedora do Prêmio Nobel da Paz de 1991) ao novo coronavírus pode não ter influência alguma sobre o resultado das eleições – já que, devido ao desligamento da internet, quase um milhão de pessoas no extremo oeste do país talvez nunca saibam que isso aconteceu.
CNN Brasil*