GENEBRA – Depois de mais de uma década de queda, a fome no mundo volta a aumentar e atinge de novo a América do Sul, continente que era considerado como o local de “vanguarda” na erradicação do problema.
Dados publicados pela Organização das Nações Unidas (ONU) revelam que 815 milhões de pessoas hoje passam fome no mundo, 11% da população. Sem citar textualmente o nome do Brasil, o diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, na sigla em inglês), José Graziano, ex-ministro do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), criticou “governos sul-americanos” que têm retirado proteções sociais em função de problemas fiscais.
O informe apontou que a proliferação de conflitos armados, mudanças climáticas e a recessão econômica seriam os principais motivos para esse aumento. Entre 2015 e 2016, as entidades acreditam que o número de famintos tenha aumentado em 38 milhões de pessoas. A última vez que um crescimento havia sido registrado foi em 2002. A fome ainda afeta 155 milhões de crianças que, diante da falta de alimentos, são mais baixas e menos desenvolvidas para sua idade.
Esse é o primeiro informe mundial sobre a fome depois que a ONU adotou como meta erradicar a fome até 2030 no planeta. O aumento do problema, porém, revela que o desafio pode ser maior que o que se previa.
De acordo com o informe, um dos aspectos que pesou foi a recessão econômica, principalmente na América do Sul. A região, pela primeira vez em mais de uma década, registrou o aumento da fome.
Em 2013, 4,7% da população da região era considerada como desnutrida. Em 2015, a taxa já tinha subido para 5%. Um ano depois, o total chegou a 5,6%. “Existem sinais de que a situação pode estar se deteriorando, principalmente na América do Sul”, aponta o informe.
Mesmo estando distante da taxa de 12,2% em 2000, a situação preocupa.
Para Graziano, tiveram impacto questões como a “desaceleração do crescimento, o desemprego, a queda do salário mínimo e a deterioração das proteções sociais”. “Talvez vejamos a volta da fome de locais onde estava erradicada”, alertou.
Sem citar textualmente o Brasil, ele alertou para a resposta de governos da região. Segundo ele, enquanto houve crescimento econômico, países montaram redes sociais. “Com a crise, elas foram retiradas. Era para ter feito o contrário. Mas alegaram que não tinham condições econômicas para fazer isso”, criticou.
Segundo ele, esses países foram afetados pelos preços de commodities em baixa que, como consequência, atingiu o pequeno agricultor e a receita fiscal do Estado para manter os programas de ajuda.
No caso do Brasil, as entidades apontam no informe que a fome atingia 4,5% da população em 2004-2006, cerca de 8 milhões de pessoas. Em 2014-2016, ela seria de menos de 2,5%.
Mas um documento enviado para a ONU há cerca de um mês e preparado por 20 entidades nacionais e internacionais alertou que existe um risco de que, para 2017, o País volte a fazer parte do Mapa da Fome.
“A América Latina foi afetada pela queda nos preços de commodities, arrecadação e crescimento. É sintomático que o panorama mostre aumento de fome na América do Sul, que era a região que ia mais adiante no combate”, insistiu.
Por enquanto, porém, o aumento mais significativo da fome foi registrado na Venezuela, país que havia sido premiado por Graziano por seu combate ao problema. A taxa da população que sofre com a desnutrição passou de 10,5% para 13%, entre 2005 e 2014. Isso significou um salto de 2,8 milhões para 4,1 milhões de pessoas afetadas. Os números sequer incluem ainda a situação de 2017 e o caos político e econômico no país sul-americano.
No total, a América Latina conta com 42 milhões de pessoas que passam fome, contra 520 milhões na Ásia e 243 milhões na África. Em termos porcentuais, a América Latina registra 6,6% de sua população com algum grau de insegurança alimentar. Na África, a taxa é de 20%.
No que se refere à má nutrição severa, o problema passou a atingir 38 milhões de latino-americanos em 2016, contra 27 milhões em 2014. Somando o critério de “insegurança alimentar” de uma forma mais geral, o informe também destacou que o problema passou a atingir 6,4% da população latino-americana, contra 4,7% em 2013.
Conflitos e mudanças climáticas
Na avaliação da ONU, parte da explicação também está na explosão de conflitos regionais pelo mundo. De acordo com os especialistas de agências como a FAO, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef, na sigla em inglês), o maior número de vítimas da fome está justamente nessas regiões de conflito armado. Sudão do Sul, Nigéria, Somália, Iêmen e Síria estão entre os principais focos da fome. Dos 815 milhões de famintos no mundo, 489 milhões deles vivem em zonas de conflitos.
Mas o aumento da fome também estaria relacionado com o impacto das mudanças climáticas. “Mesmo em regiões mais pacíficas, secas e enchentes ligadas ao fenômeno do El Niño, assim como a desaceleração econômica mundial, também tiveram um impacto na segurança alimentar”, apontam.
“Voltamos aos níveis que existiam no mundo em 2012 no que se refere à fome”, lamentou Graziano. “De cada nove pessoas no mundo, uma vai para cama com fome e isso apenas dois anos depois de o mundo se comprometer a acabar com a fome em 2030.”
Obesidade
Se a desnutrição é um problema, as agências também apontam para um aumento inédito da obesidade no mundo. Hoje, são 641 milhões de adultos nesta situação, o equivalente a 13% da população com mais de 18 anos. Outras 41 milhões de crianças com menos de 5 anos também são consideradas obesas.
Os dados mostram que a taxa de obesidade no mundo mais do que dobrou entre 1980 e 2014, atingindo em especial a América do Norte e a Europa. Nessas regiões, 28% dos adultos são considerados obesos, contra 25% na América Latina, 11% na África e 7% na Ásia.
No Brasil, os dados apontam para um aumento significativo da obesidade, passando de 15,3% da população em 2005 para 20,8% em 2014. Em números absolutos, 30 milhões de brasileiros são afetados pelo problema. Há uma década, a obesidade atingia 19 milhões de pessoas no País.
Já a anemia entre mulheres com idade reprodutiva ficou em grande parte estável e passou de 27,5% para 27,2%.
(Estadão)