O que tem a ver a luta pelos botos-cor-de-rosa do rio Amazonas com vendedores de peixes em cidades a centenas de quilômetros, ou com crianças que sofrem por tremores e dores de cabeça agudas?
A resposta é: muito. Na vasta Amazônia (que vai além do Brasil e inclui Peru, Colômbia, Bolívia, Equador, Suriname, Venezuela, Guiana e Guiana Francesa), a luta pela conservação pode abrir uma verdadeira “caixa de Pandora”, segundo o biólogo colombiano Fernando Trujillo, uma das principais autoridades do mundo em botos-cor-de-rosa.
Diretor científico da Fundação Omacha, Trujillo falou recentemente sobre seu trabalho na Royal Geographic Society, a Sociedade Real Geográfica de Londres, e mostrou como o uso de carne de botos como iscas traz luz à complexa realidade da região amazônica – uma área de 7 milhões de quilômetros quadrados e cerca de 34 milhões de habitantes – dos quais apenas 3,5 milhões são indígenas.
Além de terem gerado um documentário premiado, prestes a ser exibido pela Netflix, as pesquisas do cientista contribuíram para que o governo colombiano proibisse, neste ano, o consumo de um tipo de peixe contaminado por mercúrio da região.
Mas qual é a conexão entre o peixe e os botos?
‘Deuses da água’
Fernando Trujillo estudou Biologia Marinha e chegou à Amazônia em busca de botos por conselho do explorador francês Jacques Cousteau.
“Os golfinhos me interessavam muito. Nesta época, meus professores na Colômbia me diziam que no país não havia botos ou golfinhos e que eu deveria buscá-los nos Estados Unidos”, relatou o biólogo à BBC Mundo (o serviço de notícias em espanhol da BBC).
“Mas tive a sorte de conhecer o comandante Cousteau quando ele fez uma conferência na Colômbia na década de 1980. Ele me disse que não havia ninguém no país estudando os botos do Amazonas e perguntou: ‘Por que você não vai?”.
Trujillo acabou se mudando definitivamente para o pequeno povoado amazônico de Puerto Nariño. “Quase não tinha dinheiro, mas os indígenas me davam comida, emprestavam embarcações e começaram a me chamar de Omacha”.
Trujillo deu esse nome à fundação que criou na Amazônia colombiana, como uma metáfora para o que significa “colocar-se no lugar de outra espécie”.
Para os indígenas, os botos são animais sagrados. A grande ameaça à esta espécie, segundo o especialista, vem da pesca comercial.
“Quando os grandes bagres começaram a ficar escassos na Amazônia, começamos a notar no Brasil a pesca de um peixe carniceiro chamado piracatinga (Calophysus macropterus, também conhecido como douradinha, no Brasil, e mota, na Colômbia). Ninguém pescava a piracatinga na Colômbia, porque todo mundo sabe que ele come animais mortos – inclusive cadáveres humanos.”
O pesquisador continua: “Até o ano 2000, havia um peixe muito consumido na Colômbia que se chamava ‘el capaz’. Era um peixe do rio Magdalena. Mas quando este peixe começou a sumir, os comerciantes começaram a vender a piracacinga fingindo que era o ‘el capaz’.”
Assim começou a pesca maciça do peixe carniceiro – e a matança de botos cor de rosa, cuja carne e gordura se transformaram em iscas.
“Com apenas um boto morto usado como isca, os pescadores conseguiam pescar 250 quilos de picaratinga, o que gerou críticas em vários países”, diz Trujillo.
No Brasil, estima-se que a pesca comercial mate 1,5 mil botos a cada ano.
Proibições
Um vídeo da matança gravado em 2014 gerou tal comoção que o governo brasileiro proibiu a pesca do peixe carniceiro por cinco anos.
Como efeito colateral deste controle no Brasil, a caça a botos se intensificou em países como Peru, Bolívia e Colômbia.
“Por toda a minha vida eu trabalhei com botos. Mas então me dei conta: agora o tema não são mais os golfinhos, e sim a pescaria”, explica o pesquisador.
Trujillo começou então a investigar o consumo da piracatinga, suspeitando que, pelo fato de se tratar de um peixe carniceiro, seu organismo poderia ter altos índices de mercúrio.
“Começamos a colher amostras com Fundo Mundial para a Natureza, da ONG WWF”, conta.
Após estudos oficiais, o governo colombiano condenou em 2015 o consumo do peixe e, em setembro de 2017, proibiu permanentemente sua captura e comercialização.
Trujillo disse à BBC Mundo que ainda é muito cedo para se analisar o impacto da proibição sobre a população de botos. Mas, segundo ele, ficou clara a conexão entre a conservação do Amazonas e a exploração ilegal de ouro, de onde provém o mercúrio.
O Mercúrio e o ouro
“Para um quilo de ouro é necessário 1,32 quilo de mercúrio. Muitas vezes, entretanto, usa-se até 10 quilos de mercúrio para isolar 1 quilo de ouro. O desperdício de mercúrio é enorme.”
Quando os peixes carniceiros comem outros peixes contaminados, o mercúrio vai se acumulando, já que seu organismo não é capaz de eliminá-lo.
“O mercúrio ataca o sistema nervoso central, fígado, rins, causa temores e dores de cabeça agudas”, diz Trujillo.
“Além disso, o mercúrio é uma substância que em altas concentrações pode ser teratogênica, ou seja, pode ocasionar malformações congênitas”, diz.
“Houve uma época no Brasil em que começaram a confundir estes sintomas com ataques graves de malária”, conta.
A Fundação de Trujillo e vários institutos e governos pesquisam alternativas econômicas para a Amazônia como o turismo, os cultivos de cacau orgânico e aquicultura – a criação de espécies nativas em fazendas aquáticas. A ideia é evitar assim o garimpo ilegal que usa grandes quantidades de mercúrio, assim como a pesca predatória.
Ameaças
Um documentario sobre este trabalho e a luta pelo boto-cor-de rosa abriu o festival de Tribeca, em Nova York, e em breve estará disponivel na Netflix.
“Há algumas décadas, se tivessem me falado de aquicultura no Amazonas eu teria dado risada”, afirma. “Hoje é uma necessidade.”
Nos últimos 20 anos, houve um crescimento exponencial na população na Amazônia, graças à exploração de petróleo, à mineração, aos grandes cultivos de soja, ranchos de gado e às hidrelétricas, com a expansão de bairros nos arredores de estradas.
“Há um aspecto socioeconômico neste caso. Já existem 34 milhões de seres humanos vivendo na amazônia, dos quais apenas 3,5 milhões são indígenas.”
Trujillo sofreu ameaças após a proibição da pesca da piracatinga na Colômbia e chegou a usar um colete a prova de balas e proteção especial para voltar à região onde trabalhou por décadas.
“Foi um momento muito triste. Mais que medo, foi triste, porque eu trabalhei 30 anos de minha vida para ajudar as pessoas no Amazonas e nunca pensei que este tipo de estudos abriria uma caixa de Pandora que me renderia ameaças” , lamenta.
“Estou comprometido a buscar alternativas econômicas para a região. Não estou interessado em acabar com a economia da área, mas sim fortalecê-la e torná-la sustentável.”
A luta de Trujillo para proteger os botos deixou um grande ensinamento.
“Os cientistas ensinam que temos que estudar uma espécie e publicar artigos científicos, mas me dei conta que nossos políticos não leem artigos científicos.”
Segundo o pesquisador, a principal lição foi perceber que “além da perspectiva científica, é preciso abordar temáticas políticas e socioeconômicas” nos estudos.
“Estamos em um mundo complexo, e não podemos simplificar as coisas a partir do nosso próprio interesse”, diz. “É preciso trabalhar com economistas, sociólogos, antropólogos, cientistas políticos, comunicadores, criando redes de trabalho para a busca de soluções para a Amazônia.”